sábado, janeiro 02, 2010

Diários e Transtornos |3|

A Lembrança

É engraçado como as lembranças das pessoas simplesmente surgem na nossa
cabeça, como uma foto que cai do meio dos livros que estamos arrumando sem motivo.
Do nada somos transportados para outros lugares, para outras memórias e somos capazes
de nos sentir exatamente como nos sentimos num passado que já não existe mais.
Ao sair do banho eu liguei o rádio e antes de colocar qualquer cd da mesa, uma música começou
a tocar em uma estação qualquer exatamente nessa parte:

"...But I'm not too sure how I'm supposed to feel
Or what I'm supposed to say, but I'm not, not sure
To handle every day and I miss you love...''


Senti como se milhares de fotos estivessem caindo, e como se em cada uma delas algo estivesse
escrito, algo que eu já não era capaz de me lembrar exceto por agora, por esse
exato momento onde tudo veio do nada.
É estranho me lembrar daquela época, a sete anos atrás minha casa era a mesma, minha rua e
minha cidade eram as mesmas e eu era outra pessoa.
Com doze anos eu era um ninguém que não ia a lugar nenhum, e quem me olhasse indo
para a escola de bicicleta diria que eu era completamente igual a maioria
das pessoas... Roupas iguais, gostos iguais, QI igual.
Só uma pessoa sabia que eu não era nada daquilo que todo mundo podia ver, a única pessoa da minha
classe que falava comigo, a única menina no mundo que fazia qualquer garoto correr de medo.
Leslie não era exatamente o que eu chamaria de amiga, na verdade nós não nos falávamos muito, mas éramos capazes de
entender muito bem o silêncio um do outro.
Nos aproximamos mesmo, quando numa tarde descobrimos que éramos eu e ela contra todo mundo,
éramos o que eles chamavam de 'esquisitos', 'anormais' e outras palavras cruéis que vinham sempre
das mesmas crianças burras.
Ela gostava de cantar essa música quando estava distraída, talvez pensando em algum menino que gostava,
ou talvez apenas lembrando de algo como eu estou fazendo agora.
Junto com Leslie eu começei a entrar nesse mundo sem volta, nesse mundo das pessoas que se trancam em
si mesmas e esquecem o sentido das coisas...
Lembrei da garrafa de uísque que roubamos do pai dela, lembrei dos cigarros que ela me ensinou a tragar,
lembrei dos dias que fugimos da escola e ficamos pela rua, andando sem direção...
As lembranças de Leslie me fizeram rir um pouco, mas ela foi apenas o começo do meu caminho torto.
A música acabou e meu celular começou a tocar e eu só queria sair um pouco e me esvaziar novamente de lembranças bobas.